segunda-feira, novembro 27, 2006

Gotas de vida

E na manhã ainda escura, uma gota de orvalho escorre pelo vidro liso e frio rasgando atrás de si novos caminhos que serão em breve apagados pelo calor do astro rei e pela luz que dele emana.
No horizonte brilham serenamente as últimas estrelas, ainda que saibam que em breve o seu brilho não será capaz de rasgar a onda de luz que vem do cimo.
Nos ramos, abrigados, os pássaros preparam-se para acordar, e mesmo nas covas mais fundas os seres das trevas respondem ao dia que se avizinha.
Todos sentem o pulsar da vida. Todos eles se recolhem ou se preparam para um novo dia.
Para uns é tempo de descanso e para outros é tempo de acordar e de viver de olhos abertos, depois de terem passado pelos meigos braços de Orfeu, onde as sensações são quase reais e as desilusões são apenas pesadelos.

Já é quase manhã, e a gota que percorreu o vidro está já perto do remanso da madeira da janela, e talvez consiga ainda esta noite projectar-se para o abismo, antes que o ar a aprisione na sua imensa masmorra.
A sua viagem no desconhecido, ainda que efémera, é uma tentativa de fugir à prisão. É o sinal da persistência dos elementos.

A gota sabe que hoje é apenas uma impressão no vidro, mas se não conseguir saltar já, será transportada para uma nova realidade, ou para uma outra dimensão.
Será amanhã, talvez um pingente gelado pendendo mais perenemente sobre uma outra paisagem.
Passará então do quente do liquido ao granitico gélido do cristal sólido e será mais uma vez aprisionada até que o calor a liberte e a faça iniciar uma nova viagem...
Passará também pelos braços do seu Orfeu, e renascerá um dia para recomeçar tudo de novo.

Talvez volte à mesma janela onde esteve quase a ser feliz, e talvez tenha então tempo para saltar e cumprir o seu destino. Mesmo que não o consiga, deixará de novo a sua marca no vidro e voltará um dia, pois tal como as estrelas não se apressam a brilhar só porque o sol as vai ofuscar, também a gota sabe que tem tempo. Não precisa de se apressar...
Para uns é tempo de descanso e para outros é tempo de acordar, mas em todos a vida pulsa incessantemente.
O importante é não estar preso. O importante é tentar saltar. O importante é não desistir.

3 comentários:

Anónimo disse...

Muito lindo,sabe bem ler coisas tao bonitas

Lurdes Pereira disse...

"...porque o amor é forte como a morte...Águas torrenciais não puderam extinguir o amor, nem rios poderão afogá.lo." Cântico dos Cânticos-
Gostei muito desta metamorfose da água!!

cloinca disse...

Este texto está LINDO!!
Adorei mesmo!!
E deu-me força que hoje estava a precisar...
Falei hoje sobre o teu blog no meu cantinho... espero que não te importes.
;)
Beijinhos,
Cláudia